Estava voltando do supermercado, com o carro cheio de ovos de chocolate. Era véspera de Páscoa e a alegria dessa comemoração em família me enchia de ânimo!
Parecia realmente que havia algo diferente no ar, envolvendo toda a humanidade e realmente, a morte desse lugar à vida, quando todos reunidos, partilhavam a alegria de uma mesa farta.
Arrisquei uma olhadela para os embrulhos no banco do carro, enquanto dirigia: "Espero não ter esquecido ninguém: sobrinhos, afilhados e claro... um bem grande, recheado, para mim." Estava imersa em pensamentos, imaginando a festa que todos fariam, com aquele chocolate todo, quando um sinal vermelho de trânsito me fez parar. Nesse devaneio assustei-me quando percebi uma leve batida no vidro do carro. Era um menino, percebi virando levemente a cabeça. Pelo visto, um menino de rua, mal vestido. Provavelmente fedido. Pensei: "vai pedir dinheiro! Ou na pior das hipóteses, vai me pedir um ovo."
Fiquei um tempo na incerteza, sem saber se abria ou não o vidro, até para ver se ele saía. Mas ele continuava lá, a me olhar. As mãos sujas espalmadas no vidro. A respiração ofegante embaçando a sua imagem. E sem querer, meu olhar cruzou o dele. E eu o vi. E aqueles olhos me encheram de perguntas... "A Páscoa é uma festa em família? Eu não tenho uma família. E agora? Vivo na rua. Sou órfão". Imediatamente veio-me à mente uma frase que ouvi naquele mesmo dia, numa celebração que participei, na igreja: "Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós."
E franzindo os olhos, vi suas roupas.
Sujas. Sujas de algo avermelhado. Seria sangue? Lembrei-me de outra frase que ouvi: "Suas vestes, sujas de sangue". Arrepiei-me... Olhei novamente para
aquela figura, ou aquela metade de figura que a visão me permitia ver , sentada
confortavelmente, dentro do carro... Carregava algo nas costas. E pela sua
expressão, estava bem pesado. "Mas o que seria aquilo? Uma cruz? Estava carregando
uma cruz?" Pensei aterrorizada.
"Mas como? A cruz ficou pra trás. Não havia
mais morte. Já, já seria domingo. E domingo de Páscoa!" Comecei a ficar sem ar.
E necessitei abrir desesperadamente o vidro.
Olhei para o sinal. Vermelho. Parecia se
derreter ao sol. Pingava. E pingava... sangue??
Esfreguei os olhos. Olhei o sinal novamente. Não abria. Estava parada
ali há uma eternidade! Parecia um complô
para que eu não fugisse daquele olhar. Tomei coragem e abri o vidro; virei a
cabeça lentamente e encarei aqueles olhos. Sem barreiras, sem névoa, sem
vendas. Ele não me disse nada. Não pediu. Não sorriu. Só me olhou.
Saí da letargia que me envolvia e peguei um ovo, esticando o braço e alcançando o que estava mais próximo de mim no banco da frente do carro. Nem olhei qual seria. Pelo peso, deveria ser o maior de todos. Pensei: "Pronto! Ele irá ficar bem feliz e tudo isso vai passar. Vou-me embora viver a minha Páscoa tranquilamente, e isto será só uma lembrança." Entreguei-lhe o ovo. Ele recebeu, olhou para o ovo e para mim; novamente aquele olhar me interpelou: "está me dando esse ovo para se livrar de mim logo? Para que eu te deixe em paz? Para que o meu odor deixe de te perturbar? Para que você suba o vidro e de novo o ar condicionado e perfumado do seu carro te envolva?"
Assustada, percebi que seus lábios abriam-se lentamente, e a pergunta que se seguiu me deu uma
sacudida tão grande que não sei se senti vontade de chorar ou de gritar: "Mas...só um ovo de chocolate?"
"Só um ovo de chocolate??? Mas é o maior
de todos, o ovo que te dei! O mais caro, o mais saboroso!"___ Pensei.
E antes que eu tivesse tempo de dizer algo,
uma buzina me fez levantar os olhos e perceber que o sinal estava verde. Sim, o
sinal estava verde e eu já poderia passar. Para viver a Páscoa com a minha
família. Antes de acelerar, olhei novamente para aquele menino, que já saía
correndo entre os carros, levando consigo... "só um ovo de
chocolate".
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